sábado, 15 de agosto de 2009

Resgate mágico

UM RESGATE MÁGICO


Darliana S. França¹

Esse relato apresenta algumas ações desenvolvidas na oficina “Resgatando a poesia infantil” no Estágio de Literatura do Curso de Letras Português/ Inglês da Universidade de Santa Cruz do Sul. Estágio este que se concretizou no período de 15 de abril a 1º de junho de 2009, totalizando 15 horas/aulas, com as alunas do Curso Normal 4º Ano, da Escola Estadual de Educação Básica Padre Benjamin Copetti de Sobradinho. As ações foram coordenadas pela professora Dercy Akele e deflagradas pela acadêmica que assina este trabalho.

As atividades buscaram alcançar um objetivo principal: o resgate da poesia infantil (há muito adormecida) e despertar nas alunas do Curso Normal o gosto e o interesse pela leitura poética, para que posteriormente, levem a poesia para suas salas de aula, apaixonando também os seus alunos por este gênero.

Encontramos inúmeras definições de poesia de diversos ângulos, historiadores e poetas. No entanto, podemos verificar pontos convergentes e um deles é o fato da poesia desvelar acontecimentos reais ou não, através da sensibilidade.

A poesia é a linguagem da afetividade, das emoções, das paixões, ela toca os sentimentos dos leitores (ou ouvintes), é capaz de fazer vibrar as cordas sensíveis. Mas não se satisfaz com afetos superficiais, visíveis, ela “penetra mais fundo, vai até ao não-dito” (JEAN, 1989, p. 45).

Para trabalhar a poesia em sala de aula, propõe-se um método próprio, uma boa seleção textual, tendo por base os interesses dos destinatários e, ainda, propiciar aquelas sensações que correspondem à criação do “estado poético”, permitindo a expansão de sua criatividade e
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¹ Acadêmica do Curso de letras da UNISC.
ampliando sua compreensão real. E, o mais importante fisgar um novo leitor para esse gênero. Pensando nos itens acima, é que selecionei poesias de diversos poetas, principalmente Sérgio Caparelli. Pois a poesia desse autor é prazerosa, divertida, lúdica, gostosa, brincante e, ainda “não inferioriza o seu destinatário, tratando-o ao pé de igualdade e apresentando-lhe um texto com o mesmo nível artístico que para o adulto [...]” (BORDINI, 1991, p. 21).

Ao buscar uma melhor metodologia para ensinar a poesia descobri que ela não pode ser ensinada, mas vivida, sentida, experimentada, descoberta e, por isso, não basta apenas apresentar bons textos, é necessário que haja paixão da parte do professor, a sensibilidade e a instrumentação docente adequada para que o trabalho atinja seus objetivos. Segundo Averbuck citada por Quevedo (2000, p. 136) “é preciso antes de mais nada, que o professor seja ele mesmo sensível ao texto poético, permeável à comunicação do artista, para que se torne porta-voz desta comunicação”, e com isso sensibilize o leitor com o texto.

Como já mencionado acima escolhi (na grande maioria) as poesias de Caparelli, pois nelas podemos encontrar
versos dos mais diversos tipos e dos mais diferentes assuntos: desde aqueles que surpreendem pelo som, pela imagem ou pelo sentido das palavras, até aqueles que tratam das relações da criança consigo mesma, com outras crianças, com a cidade onde vivem, ou com o mundo e a natureza que as cercam. Tudo isso, é claro, sem deixar de lado o nonsense, ou seja, aquilo que parece não ter sentido a não ser o de jogar com a imaginação (CAPARELLI, 2006, p.8).
A poesia de Sérgio Caparelli aborda temas relacionados com o universo infantil, bebendo na fonte folclórica e migrando rumo ao seu cotidiano. Emprega linguagem própria da criança, usando vocábulos e sons pertencentes ao universo infantil, proporcionando no leitor o encanto da musicalidade existente nas rimas, na escolha dos sons e na repetição dos versos. Sua poesia é alegre, divertida e encanta todos os leitores, permitindo que esses viajem por um mundo novo em que tudo é possível basta imaginar.

Os encontros da oficina aconteciam toda a semana, tendo um período de duas horas. Planejei os encontros dividindo-os em partes que ficavam interligadas entre si: conhecimento teórico da poesia, planejamentos de como trabalhar o gênero com crianças e muita leitura de textos poéticos. Como todo o planejamento é flexível, muitas vezes desenvolvíamos mais uma parte que outra.

No primeiro encontro, colei várias poesias em folhas de oficio. Cada aluna deveria escolher uma folha, relacionando o texto entre outras coisas com um episódio, uma característica da colega e dar a mesma. Essa brincadeira foi muito divertida, pois inúmeros devaneios foram despertados pelo texto, além dos risos provocados pela associação pessoa/ poesia. Isso porque, “ao toque da poesia pedras, cores, sons, metros, rimas, ritmos, palavras transformam-se em imagens que podem desencadear múltiplas visões e associações no imaginário do leitor” (HUIZINGA, 2000, p. 22). Essas imagens que brotam do imaginário do leitor estão cheias de significados, pois nascem das suas experiências vividas, e o encaminham a uma leitura sensível, revivendo partes boas ou má de nossa vida. A linguagem poética é repleta de leitura sensorial que é pródiga na infância e empobrecida na face adulta. “Talvez aqui faça sentido a afirmação de Baudelaire de que a poesia é a infância que se encontrou de novo” (HUIZINGA, 2000, p. 36).
Além do mais, a experiência com o poético envolve a mediação simbólica, pois fizemos uma leitura sensorial a partir das experiências que vivenciamos. Segundo Bosi (1996) quando ouvimos uma poesia as imagens de pessoas, de coisas, de gestos e atitudes que povoam a fantasia do poeta, deixam de ser dele a passam a fazer parte do nosso sentimento através de nossas memórias: melancólicas, nostálgicas, de enternecimento, ou até mesmo, ”aquela vã restauração das coisas perdidas” (p.9) que tanto significa para nós. E ainda, a leitura nos convida a buscar “os segredos, os mistérios, os silêncios por trás das paisagens, das faces, dos objetivos” (HUIZINGA, 2000, p.35).

No segundo encontro li diversas poesias entre elas “A estrada e o cavalinho” de Sérgio Caparelli. Nesse texto poético ocorre a cadência dos vocábulos criando um ritmo adequado, permitindo a associação entre o trote feito pelo cavalo (pacatá, pacatá) com o ritmo musical do poema. Nele também ocorre a fusão olho-ouvido, à medida que, as cenas verbo-visual se sucedem podemos ouvir o trote do cavalo e imaginar as suas ações. Esses são um dos motivos que tanto agrada o leitor/ ouvinte ao se deparar com esse texto. Ao final da leitura a reação das meninas variou entre a surpresa, o encantamento e o riso, confirmando a força que a palavra poética possui junto ao público. A sensação de estranheza (a me ver correndo pela sala, ao imitar o cavalo) do início cedeu lugar à admiração e após os questionamentos. Segundo elas, nunca havia visto uma poesia assim, ou dita daquela forma.

Como essas afirmações das alunas, pude explicar que, segundo Jean (1989) “a linguagem da poesia está no corpo, é produzida pelo corpo e nele ecoa” (p. 77), pois é um corpo que fala representado pela voz que dele emana. Ecoa no sentido próprio do termo, não apenas no aparelho auditivo, mas em todo o corpo. A poesia é denominada a “linguagem global do ser”, já que é uma linguagem orgânica e viva, isso significa que ela exprime a vida do corpo, ao mesmo tempo à vida do espírito. Ela cria com toda a liberdade para explicitar de uma forma perfeita o conceito das coisas e para “realizar um acordo entre as existências externas e sua essência íntima”. (p. 93) Assim, damos vida à poesia através do corpo e da voz.

Nos encontros seguintes, lemos e discutimos os textos, no início as meninas não queriam ler as poesias em voz alta. O ser humano por sua natureza contraditória, experimenta, ao mesmo tempo medo e fascínio diante do desafio de expressar-se perante outras pessoas. Outrossim, ocorreu com essa turma, o desafio lançado para elas que num primeiro momento gerou bastante ansiedade, com o decorrer das leituras, passou a ser visto como oportunidade de crescimento. Essa superação pode ser vista como, um avanço considerável, quanto ao nível de recepção do texto poético.

No decorrer dos encontros, inúmeras foram às vezes que as alunas me pediram sugestões de poesia para ler para os seus alunos do mini-estágio (estágio em sala de aula por três dias). Como isso pude, perceber que o conceito de poesia havia mudado, o que antes era uma coisa chata, desconectada de sua realidade, passou a ser lida, ouvida, vivida, brincada e até planejada, ou seja, passou a ser apreciada e, por isso, a fazer parte do cotidiano das educandas. Isso me fez ver que estava no caminho certo e logo alcançaria (ou já tinha alcançado) os objetivos propostos no estágio.

Porém eu queria ir além, foi então que propus as alunas lerem os textos poéticos para as crianças de uma EMEI, desta forma estava colocando os três pilares desse trabalho em contato: meninas (voz/corpo), o texto poético e as crianças. Pois acreditava que no momento em que as estudantes percebessem o brilho no olhar dos infantes, perante a poesia e, esse mundo mágico e fantástico que ela abre para quem se aventura por ele, elas poderiam ver a importância do mesmo para a infância.

Pois é na infância que a poesia se manifesta na criança, também devida a sua imaginação já que essa está mais aguçada. O infante imagina tanto de olhos fechados quanto abertos, “ouve a música e as vozes do mundo e das coisas” (BOCHECO, 2002, p. 22), pois o seu modo de ver o mundo é baseado na intuição, na emoção e no juízo metafórico. Por isso

a criança com a maior facilidade adere aos universos do nonsense, mais ainda, ela reconhece nas feições inauditas do “sem lógica”, do absurdo, o mesmo espírito de jogo, ludismo e magia com que constrói o seu universo e se relaciona com as coisas do mundo. (BOCHECO, 2002.p.55)


Esse contato com o texto poético distancia a criança do seu ambiente familiar, faz penetrar em outro universo e, isso propicia o alargamento dos conteúdos da consciência por uma prazerosa tomada de posse do desconhecido, suscitada pelo desafio das formas e das ideias. No entanto, essa função reconfortante da poesia, não poupa o infante dos problemas, do inapreensível, mas o leva ao conhecimento, através das várias formas que a poesia se apresenta.

Durante toda a apresentação as meninas puderam se deparar com os rostos entusiasmados dos infantes, que riam, se assustavam, temiam, se admiravam, questionavam perante as poesias infantis e os vários personagens ali presente, como: A vaca Amarela, Seu Lobo (Lobo e a Chapeuzinho Vermelho), Minha Cama (hipopótamo), o Fantasma desafinado e outras. As garotas tiveram a oportunidade de conduzir os infantes até esse mundo mágico repleto de nonsense, de fantasia, do ilógico e de ludismo que só a poesia pode transportar e, também viajaram com eles despertando a sua infância adormecida.

Como consequência do envolvimento do grupo com a poesia e com as crianças, as meninas foram convidadas a visitar outras instituições de ensino tanto particular quanto pública desse município, até então já visitaram mais três escolas e quatro EMEI, até agora. Sei que irão além. Isso porque, acreditam no poder do texto poético e na necessidade da fantasia e do mágico na vida dos seres humanos.

Acredito convictamente, que fui além, alcancei mais dos que os objetivos por mim almejados. O grupo apaixonou-se pela poesia a ponto de levar essa magia para suas salas de aula e para as demais crianças que possuem contato. A oficina “Resgatando a poesia infantil” fez com que as meninas do grupo pudessem perceber que a experiência poética faz com que a criança veja o mundo de forma diferente. Propunhe a ela que se abra para o diverso, que jogue com os sons, conceitos e vivências fantásticas, que indague e investigue a natureza das coisas, que busque os lados não vistos, que pressinta e não se contente com versões recebidas, e o mais importante, que mantenha viva a capacidade de maravilhar-se.